Frederico van Zeller

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Parece incrível. Mas é mesmo assim. Um homem só, na cozinha, a sua mulher na sala, é a casa deles. De outra forma não podia ser. Só entra quem sabe o preceito, quem conhece a chave cerimoniosa de um jogo de esperas e silêncios, na esperança de ser aceite, convidado, por uma senhora de aparência frágil, baixinha, pesinhos de lã, mas capaz de desfazer num simples esgar o mais valente dos valentes. Nas paredes há memórias desbotadas, ladeadas por recortes de jornais onde se leem rasgados elogios à cozinha de Zé, escritos pelas mãos dos mais ilustres comensais de norte a sul continental. Uma dança com os tachos, com os melhores dos ingredientes, com cinquenta anos de mão afinada numa ementa que nunca mudou. O mundo, por ali, é exatamente o mesmo de há cinquenta anos. Se abrirmos uma gaveta, aquela mais escondida, certamente que ainda guarda o mesmo ar com que respirou Martin Luther King, Jr antes de perecer. Lá para os lados de Vila do Bispo, ali perto de Sagres, na mesma estrada que nos leva e trás do barlavento, há um homem que sabe do segredo dos tachos, que fala a língua do lume e conversa com o que nos chega ao prato. Uma língua muda, de gestos simples que só ele compreende, tratando por tu os refogados e a ordem das coisas culinárias. Lilita, a sua mulher, com olhar de batuta, astuta, organiza a sala consoante o corrupio solitário da cozinha. Só se senta quem aprecia, quem pode aguardar, quem sabe esperar e quem lhe cai no goto. Enquanto esperava pelo guisado de gambas, vi alguns atrevidos a serem expulsos por Lilita, vilipendiados em praça pública sem qualquer pudor. É a casa deles, e há regras, pois claro. Destemida, do alto do seu metro e pouco, faz tremer o maior dos maiores, o mais bravo dos bravos. Não traga pressa, traga amizade, alguma paciência, e, sobretudo, saiba escutar com atenção o que Zé lhe quer contar. A comida chega nos tachos com vagar, mas carregados de sabor, de saber, é meio século de lume amestrado, docilmente domado. Zé, timidamente, numa brevíssima pausa dos afazeres da cozinha, rodeando as mesas, pergunta-nos se estava tudo bom, se queremos mais, ao que respondemos com um sorriso franco, honesto e profundo, ainda com a alma cheia, incapazes de vocabular. Obrigado Zé. Lá voltarei, passarei a mesma provação, até que um dia, com sorte, Lilita me considere amigo, que venho por bem, que já fui aprendendo aquela língua dos tachos do Zé e a cerimonia de espera, no Café Correia, lá para os lados de onde o vento barla.

Zé, na cozinha com os tachos amestrados.