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Escrito em luz e letras

São retratos, paisagens, fachadas, arvores, pedras ou tão só pedaços de mundo que me entraram pela lente e se me guardaram na mente. Deixo-as gravados aqui, em luz e letras. Podem ser um ponto de partida ou de chegada, uma história contada, fotografada, com sentido ou não. Se uma imagem vale por mil palavras, então, juntemos as duas no mesmo lugar, a par e passo, terra e lua, para que nada fique por dizer.

Parece incrível. Mas é mesmo assim. Um homem só, na cozinha, a sua mulher na sala, é a casa deles. De outra forma não podia ser. Só entra quem sabe o preceito, quem conhece a chave cerimoniosa de um jogo de esperas e silêncios, na esperança de ser aceite, convidado, por uma senhora de aparência frágil, baixinha, pesinhos de lã, mas capaz de desfazer num simples esgar o mais valente dos valentes. Nas paredes há memórias desbotadas, ladeadas por recortes de jornais onde se leem rasgados elogios à cozinha de Zé, escritos pelas mãos dos mais ilustres comensais de norte a sul continental. Uma dança com os tachos, com os melhores dos ingredientes, com cinquenta anos de mão afinada numa ementa que nunca mudou. O mundo, por ali, é exatamente o mesmo de há cinquenta anos. Se abrirmos uma gaveta, aquela mais escondida, certamente que ainda guarda o mesmo ar com que respirou Martin Luther King, Jr antes de perecer. Lá para os lados de Vila do Bispo, ali perto de Sagres, na mesma estrada que nos leva e trás do barlavento, há um homem que sabe do segredo dos tachos, que fala a língua do lume e conversa com o que nos chega ao prato. Uma língua muda, de gestos simples que só ele compreende, tratando por tu os refogados e a ordem das coisas culinárias. Lilita, a sua mulher, com olhar de batuta, astuta, organiza a sala consoante o corrupio solitário da cozinha. Só se senta quem aprecia, quem pode aguardar, quem sabe esperar e quem lhe cai no goto. Enquanto esperava pelo guisado de gambas, vi alguns atrevidos a serem expulsos por Lilita, vilipendiados em praça pública sem qualquer pudor. É a casa deles, e há regras, pois claro. Destemida, do alto do seu metro e pouco, faz tremer o maior dos maiores, o mais bravo dos bravos. Não traga pressa, traga amizade, alguma paciência, e, sobretudo, saiba escutar com atenção o que Zé lhe quer contar. A comida chega nos tachos com vagar, mas carregados de sabor, de saber, é meio século de lume amestrado, docilmente domado. Zé, timidamente, numa brevíssima pausa dos afazeres da cozinha, rodeando as mesas, pergunta-nos se estava tudo bom, se queremos mais, ao que respondemos com um sorriso franco, honesto e profundo, ainda com a alma cheia, incapazes de vocabular. Obrigado Zé. Lá voltarei, passarei a mesma provação, até que um dia, com sorte, Lilita me considere amigo, que venho por bem, que já fui aprendendo aquela língua dos tachos do Zé e a cerimonia de espera, no Café Correia, lá para os lados de onde o vento barla.

Zé, na cozinha com os tachos amestrados.

Zé, na cozinha com os tachos amestrados.